Atrás
do monte de terra se estendia a imensidão da nossa estrela radiante. Os mares
de morros banhavam caudalosamente a topografia da região, e entre um pico e
outro, já era possível vislumbrar um pequeno exemplo do nascer do sol. Os raios
chegavam efervescentes atingindo todos os cantos e extinguindo a escuridão,
tudo se iluminava, e o céu azul fazia parte da poesia daquele dia maravilhoso.
Como
uma anomalia do relevo, uma pequena estradinha circulava as montanhas,
vinculando os espaços e progredindo em meio ao mar de terra que se estendia
infinito a fora. Algumas plantas e flores margeavam discretamente a estrada, e
de muitos em muitos metros podia se encontrar alguma placa enferrujada
simbolizando alguma direção ou distância.
“Cuidado,
local perigoso à esquerda, apenas pessoas capacitadas” era o que estava escrito
naquela placa branca desbotada no meio da estrada. A bifurcação se fazia e a
mata já tomava conta do caminho da esquerda, onde não era comum a movimentação.
Quando o Jipe azul marinho passou cortando o mato, fez-se então novamente o
trilhar que guiava à caverna subterrânea que ali se escondia das pessoas.
***
Algumas
horas antes, naquele mesmo dia, cinco jovens se encontravam pra uma viagem de
fim de semana. O sol nem havia nascido e eles depositavam as bagagens dentro do
Jipe, tudo estava certo pra mais uma aventura de verão, menos o Miguel, que
estava atrasado em chegar ao local combinado.
Dentre
os aventureiros, tínhamos duas garotas e três rapazes, todos eles já amigos de
longa data devido à escola que desde sempre era comum a todos. Hoje já formados
alguns, outros na faculdade e outros nem isso, eles se preparavam pra já
catalogada viagem de verão.
Fabricio
era o mais comunicativo, o mais alto também, esbanjava suas pernas magrelas
esticadas e sua formação invejável de direito na melhor faculdade do país, era
um cara engraçado e tinha tendências a assumir lideranças, como dono no Jipe já
estava a alguns anos levando os amigos para viajar.
Catarine
era a mais velha do grupo, mas nem por isso a mais inteligente, tinha seu
diploma de enfermagem e estava contente com isso, a vida lhe sorria sempre,
alguns diziam pelo seu exclusivo sorriso encantador, outros já preferiam
atribuir às suas curvas de parar avenidas. Ela era uma garota quieta, gostava
de sair com os amigos e sempre os cativava com sua inocência.
João
era o jovem rebelde do grupo, ia vivendo a vida aonde ela o fosse levando, e
assim tivera suas dúzias de empregos anuais, aguardando aquele em que fosse
aceita-lo naturalmente. Ele era um rapaz divertido, mas não tinha muita visão
das coisas, sempre com seu violão nas costas destilava as ondas sonoras no
ambiente com seus acordes doces e tristes, que contraditoriamente deixava o
ambiente feliz e harmonioso.
A
Jéssica era a moça determinada do grupo, aquele tipo de pessoa que não larga
dos sonhos e dos desejos até conseguir, aquela pessoa que cria determinações e
diretrizes a serem seguidas dentro das possibilidades do ambiente em questão.
Superdivertida e animada, tinha um coração maravilho e namorava o Miguel, que
por sinal ainda não havia chegado. Ela estava pra se formar em medicina e era
um orgulho pra quem a conhecia, não se abalava e estava sempre pronta pra
qualquer desafio.
E
não menos importante, Miguel, que acabava de chegar com sua mochila a colocando
no Jipe e se desculpando pelo atraso, ele mal chegou e eles partiram estrada a
fora em direção ao desconhecido. Miguel limpou seus óculos e os colocou de
volta no rosto, era um estudante de engenharia bem empenhado em se satisfazer
profissionalmente no futuro, um tipo de nerd, um cara sensato e inteligente,
que as vezes não era entendido, mas fazia parte integral do grupo, sempre
levando ideias e atualizações para as aventuras de verão.
***
As
risadas meio sonolentas começavam a contaminar o mar de montanhas, e aos poucos
as câmeras começaram a disparar contra a paisagem linda que o sol banhava
lentamente como se fosse programado. O Jipe fez uma leve curva a esquerda, e os
jovens aventureiros se entreolharam como o inicio de mais uma grande e
divertida aventura entre irmãos.
***
O
jipe atropelou por mais alguns metros as ervas daninhas que tomaram conta
daquela estradinha, e então parou. Eles fizeram silêncio e puderam ouvir, além
do descansar do motor, alguns passarinhos e insetos do ambiente, Jéssica já
agarrou Miguel e ficou atenta a qualquer inseto asqueroso próximo dos seus pés.
Eles caminharam alguns passos e todos pararam em frente ao paredão de rochas
que cobria todo o horizonte a suas frentes. Leram sincronizadamente, todos em
pensamento, a placa que dizia “Hope Faith Sub Cave’’, ou melhor dizendo,
“caverna subterrânea de esperamos fé’’.
Todos
se entreolharam, surgiu um sorriso sarcástico no rosto dos garotos e um de medo
no das garotas, eles começaram a descarregar algumas coisas que levariam e
colocar dentro das mochilas. Fabricio fazia isso com um sorriso esplendido no
rosto, como um nobre aventureiro prestes a entrar no castelo do dragão. Enfim,
todos tinham suas mochilas em mãos, as lanternas estavam posicionadas e eles
novamente em silêncio se entreolharam novamente, e logo o silêncio foi
interrompido:
-
Não é por nada, mas acho que a gente não devia mesmo entrar ai – disse Miguel
em um tom de desconfiança.
-
Para de ser mulherzinha Brow – João deu um tapinha nas costas de Miguel e deu
uma gargalhada bem alta.
As
garotas fizeram cara de que concordavam com Miguel, e todos ficaram no meio fio
da entrada da caverna, onde o sol se dividia em claro e escuridão. Fabrício
então abriu a boca pra dizer algumas palavras bonitas, e de fato, tranquilizou
todos ali, ressaltando que não era nada demais, ninguém se arriscaria ali, não
fariam nada além do controlado, voltariam logo, era apenas uma aventura por
diversão. E como todos estavam sedentos de mistério e aventura, foi como o
gatilho para desencadear a adrenalina que tomava aqueles jovens de uma façanha
daquelas. Então meio desconfiados, enfim, todos eles entraram pela estreita
abertura na parede de rochas.
***
Logo
ao entrar na caverna se estendia um corredor sinuoso por alguns metros, ele
parecia se estreitar a cada passo, até que todos tiveram que ficar enfileirados
um atrás do outro. Fabrício carregava uma lanterna acesa liderando o grupo, e
depois de alguns passos o pequeno corredor se dissipou. Uma grande sala havia
sido revelada, ela tinha um aspecto oval, era bem espaçosa e as paredes de
pedra subiam em forma de cúpula até chegarem ao topo, aonde havia um grande
buraco, por onde a luz do sol entrava violentamente clareando boa parte daquele
enorme hall. As paredes e o teto estavam forrados de estalagmites e pedras que
pareciam brotar e nascer das paredes, era um lugar lindo, mas ao mesmo tempo
aterrorizante.
“Maneiro”
João dizia ao andar com a cabeça inclinada revelando sua admiração à beleza da
caverna. Em alguns cantos específicos daquele grande salão havia algumas pedras
que pareciam ter sido esculpidas pelo homem, era como se fossem pequenas salas
de estar, com algumas cadeiras e mesinhas feitas de pedra. Miguel sugeriu que
os exploradores deveriam ter as feito com o intuito de ter um lugar para comer
e descansar sem precisas regredir até o exterior.
-
Hey rapazes, vejam só isso daqui ! – ecoou a voz de Catarine do outro lado do
hall.
-
Parece mais um corredor. – disse Jéssica no descaso.
Os
garotos iluminaram o corredor e não enxergavam seu fim, estava completamente
envolvido pela escuridão. João já tomou a frente e queria explorar mais a
fundo, Fabrício que há certo tempo estava interessado em Catarine ficou
encabulado de demonstrar medo, e logo se juntou a João entrando corredor
adentro.
-
Esperem! Onde vocês pensam que vão, pode ser perigoso, não dá pra ver um palmo
na frente do nariz! – Dizia Miguel, que não era um rapaz covarde, mas esbanjava
de muita sensatez pra qualquer coisa.
As
duas garotas não queriam entrar ali, e por fim Fabrício e João seguiram
sozinhos pelo corredor escuro e misterioso, logo os que ficaram viram
gradualmente os dois sumirem em meio à escuridão. Miguel sentou em uma das
pedras do hall e convidou as garotas para se juntarem a ele. Eles ficaram
jogando conversa fora e relembraram da última viagem à praia, e isso rendeu
algumas boas risadas que ecoavam pelo grande salão oval da caverna.
Uma
pedra havia sido iluminada naquele grande salão, de repente eles notaram que o
sol havia mudado de posição e seu feixe agora estava voltado para outro canto.
Instintivamente todos os três ali olharam para o relógio:
-
Pouts! Já fazem trinta minutos, será que aconteceu alguma coisa? – Esbanjava
preocupação nos olhos de Catarine.
Jéssica
apertou forte a mão de Miguel e ele esboçou alguma reação de resposta, e quando
abriu a boca pra dizer algo, antes que pudesse pronunciar a primeira palavra
todos ouviram alto e claro:
-
Socorro! Socorro! Me ajudem!
A
expressão no rosto deles mudou na hora, parecia a voz do João, e apesar de tudo
eles correram em direção ao corredor escuro, Miguel pegou a lanterna e rápido,
porem cautelosamente, eles seguiam juntos em direção a voz. As garotas suavam
frio, e Miguel estava apavorado, não sabia se ficava feliz ou aterrorizado pela
voz de pedido de ajuda de João não ter sessado por sequer um segundo.
De
repente eles chegaram a uma sala grande, exatamente como estavam anteriormente,
todos estacaram na entrada do local, o sol entrava pelo buraco no teto e
iluminava parcialmente o hall.
-
Voltamos pro mesmo lugar? Como isso é possível? – Jéssica indagava assustada.
-
Não, estamos em outra sala, a gente continuou seguindo em direção Sul, as
pedras estão diferentes - Miguel
explicou pra namorada e pra Catarine que estava pálida.
Catarine
apontou para uma grande pedra que havia no canto leste da sala, todos olharam e
os olhos se encheram de pavor. João estava deitado por debaixo da pedra com o
corpo forrado de um vermelho escuro, ele gritava e fazia careta de dor, o
sangue fazia uma pequena poça próxima à pedra.
Eles
correram até ele aterrorizados, e quando estavam há poucos passos ouviram um
rugido enfurecido. Eles estacaram na hora no lugar e um vulto preto surgiu das
sombras agarrando todos ao mesmo tempo.
Um
clarão pairou no meio da sala. ‘um flash?’ pensou Miguel. Era um Flash da
máquina fotográfica que estava na mão de João, que registrava o susto que os
amigos tomaram enquanto Fabrício os assustava com alguns galhos da caverna. Os
dois haviam encontrado um resto de Ketchup em uma vasilha usada e bolaram uma
brincadeira com os demais.
Ao
sacarem tudo Jéssica se agachou com a mão no peito, aliviada e esperando seus
batimentos se acalmarem. Catarine continuava pálida, ainda perdida com um delay
do susto que havia tomado. Miguel se enfureceu e começou a soltar palavras
fortes aos amigos, no final todos se acalmaram e deram, enfim, muita risada da
foto que havia sido registrada ali.
-
Acho que devemos ir, o sol não vai tardar a se por! – Exclamou Catarine.
-
Encontramos outro corredor, acho que são vários interligando vários salões
deste aqui, vamos desvenda-los! – dizia João ignorando a voz da amiga.
Todos
ali sentiam que era hora de partir, e ao convencerem João eles voltaram
calmamente pelo corredor escuro. Quando chegaram de volta no primeiro salão
observaram de um angulo diferente, havia uma espécie de haste próxima à entrada
da caverna, eles se entreolharam e João já correu na frente pra analisar
sozinho. Miguel estava abaixado amarrando seu cadarço e não prestou atenção.
João grudou no pedaço de madeira e gritou “Vamos usar pra fazer uma fogueira!”
e puxou a haste. Miguel que foi surpreendido pelo grito olhou pra frente e em
fração de segundos sua mente processou toda a informação, como se ele já tivesse
previsto. E a única coisa que conseguiu gritar foi um ‘não’, tão alto que
parecia até ter intensificado as pedras que caiam do topo da caverna e
escorregavam como uma avalanche dentro do hall.
Todos
correram de volta para o corredor, enquanto a caverna desmoronava em cima
deles, o barulho era ensurdecedor e a poeira se erguia como uma onda de um
tsunami. João que estava mais próximo da saída correu desesperadamente, ao
atingir cerca da metade da sala uma pequena pedra em alta velocidade atingiu
sua cabeça e o fazendo cair na hora. Fabricio que viu a cena voltou para
resgatar o amigo, e no meio da chuva de rochas e poeira agachou ao chão e
colocou João nas suas costas, retornando ao abrigo do corredor estreito.
***
Era
muito delicada a situação, os quatro jovens olhavam para o grande salão e o
viam pela metade, totalmente forrado por pedras. Ninguém quis dizer nada, mas
na cabeça de cada um ali estava a pergunta que geraria o caos ‘como sairemos
daqui?’.
Eles
decidiram esperar alguns minutos, estavam para entrar em pânico a qualquer
momento, quando repentinamente o João começou a abrir os olhos. Ele aos poucos
foi se recuperando e logo conseguiu sentar e olhar para o redor, fez uma cara
de quem parecia estar acordando num pesadelo e sem dizer nada compartilhou o
pânico de todos eles ali.
-
O que faremos? – Jessica já sentia desesperada a vontade de chorar.
-
Calma! Vamos manter a calma, vamos sair daqui. – Dizia Miguel tentando manter a
ordem.
-
Como? Não tem jeito, vamos morrer, estamos perdidos! – dramatizava João com as
mãos sobre a cabeça.
Catarine
aproveitou pra chorar em meio a confusão, e os minutos rolavam enquanto ninguém
ali conseguia se entender. Fabrício sem dizer nada havia corrido até as pedras
e começou a retira-las, ao menos as que ele conseguia. Logo ele estava soando e
percebeu que as pedras eram enormes e pesadas, algumas haviam começado a
deslizar do topo pela perturbação no equilíbrio da barragem de pedras, e Miguel
pediu que ela não fizesse mais esforços, pois sua garrafa de água havia acabado,
e a barragem quase desmoronou novamente.
-
Qual a ideia então gênio? – Fabrício dizia nervoso, buscando a última gota de
água da sua garrafa.
Miguel
explicou que seria inútil tentar tirar as pedras do caminho, pois só gastaria
energias, eles ainda tinham quatro garrafas bem cheias, e muito provavelmente
teriam que passar a noite ali.
Olhando
para cima eles viam o buraco no topo do hall, a ideia de subir até lá também já
havia sido descartada, já que não havia como, eram muitos metros acima do solo,
não havia jeito possível de chegar até lá, no entanto a clareira, que já
começava a mostrar a luz da lua, trazia a ideia obvia de ligar os seus
telefones e pedir ajuda. João não tinha celular e o de Miguel havia acabado a
bateria. Os outros três tentaram e sem sucesso não encontraram sinal algum.
Desligaram o celular pra economizar bateria e começaram a planejar como
dormiriam dentro da caverna.
***
O
sol novamente entrava pelo buraco lá em cima, dessa vez ele não parecia tão
bonito, todos ali estavam desgastados e com cara de funeral. Um deles ligou o
celular e tentou mais uma vez achar sinal, mais uma tentativa inútil. Eles se
revezariam em busca de sinal e enquanto isso, sem perder tempo, João e Fabrício
aproveitaram o sol pra adentrar na caverna e procurar uma outra saída.
Jéssica
se aproximou calmamente de Miguel e o abraçou. Ela o olhou nos olhos e sorriu
carinhosamente, ele ficou imóvel sem entender muito bem, ela o beijou
ternamente e ele sorriu pra ela. Ela segurou suas mãos e colocou sobre seu peito
e disse:
-
Meu amor, tudo vai dar certo, eu consigo sentir que nosso destino não pertence
a essa caverna, Deus me contou essa noite que existem vidas importantes aqui
dentro.
Miguel
deixou escapar uma lágrima dos olhos e abraçou novamente a namorada com muita
força e carinho. Os garotos haviam voltado e pela cara deles não obtiveram
sucesso, eles disseram que existem quatro salões iguais aquele e corredores que
interligavam uns aos outros em forma de labirinto, mas a possibilidade de outra
saída era quase nula.
A
compaixão entre eles se manifestou, e eles sabiam que se tivessem que morrer
todos ali, morreriam juntos e unidos, em nome da amizade que haviam cultivado
ao longo de todos esses anos. Ninguém ali havia avisado formalmente os
familiares que iriam para aquela caverna, então a tentativa de um telefonema
era desesperada. Dois dias haviam passado e o racionamento de comida estava
sendo bem severo para a melhor possibilidade possível, a água estava se
esgotando e os esforços começavam a ficar desesperados. Fabricio sugeriu que
eles urinassem novamente nas garrafas e bebessem para evitar a desidratação,
que outra escolha tinham? Catarine não conseguiu, e seria possivelmente a
primeira a sentir os efeitos da falta de água no organismo.
***
Jéssica ligou o celular
bem embaixo do buraco e por alguns segundos um sinal surgiu em seu celular, ele
desaparecia e voltava constantemente, ela não conseguiu realizar uma ligação,
mas mais do que depressa tentou enviar uma mensagem para fora da caverna. O
celular não deu resposta, o sinal sumiu e não quis mais voltar, todos estavam
na expectativa, mas nada ali parecia progredir pra melhor.
***
Três
semanas depois, todos estavam à beira do seu limite, o emocional já misturava
todos os sentidos e eles nunca tiveram tanta certeza que ali seriam os seus
leitos de morte. Os fortes sintomas de um corpo mal alimentado e mal hidratado
apareciam nos pobres rapazes, não havia mais água, não havia mais comida, e
quase não havia mais esperanças.
Jéssica
estava isolada aquele dia, passou o dia todo sentada sozinha do outro lado do
hall, fiava olhando o céu e pensando sozinha, ninguém ousou em incomoda-la, com
o tempo até falar parecia gastar energia, e todos já estavam anos mais velhos
ali dentro sem se alimentarem.
De
repente a garota se levantou, veio andando aos poucos até onde estavam os
garotos, pediu que todos se juntassem ali, e todos obedeceram. Ela olhou por um
tempo para o rosto de cada um ali, compartilhando a mesma dor e sensação que
cada um estava sentindo e depois de muito pesar proferiu cautelosamente suas
palavras:
-
Eu não quero assistir todos nós morrendo aqui de mãos dadas, sendo que alguns
podem conseguir se safar, eu acho que um de nós deveria se sacrificar, e
oferecer o corpo ao outro como alimento.
-
Você diz canibalismo? – João engasgava nas palavras.
-
Não e sim, eu quero dizer que se alguém servir de alimento os outros quatro
terão mais chances, e assim um a um podem salvar os demais.
-
Mas eu não quero ver ninguém morrendo – Disse Catarine apavorada.
-
Mas você vai ter que ver, ou você vê um, ou todos nós...
Miguel
ouvia calado a namorada, ele já estava a pensar naquela hipótese, mas sua ética
não permitia que ele a propusesse para os amigos, em especial por ter que
submeter sua namorada a esse tipo de procedimento, ele preferia morrer com
todos ali, não colocaria a vida de quem amava em um jogo, preferiria perder a
vida junto com ela, mas ele via a determinação nos olhos dela e logo quando ela
conseguiu convencer todos eles, eles olharam para Miguel, e ele não teve
escolha a não ser dizer que sim.
A
discussão agora era quem deveria morrer, chegava a ser assustador e
embriagante, mas a situação não deixava escolhas, e foi Miguel que sugeriu que
tirassem no palito o sorteado. Eles pegaram cinco gravetos e um deles foi
marcado com um risco usando uma pedra, o que ficasse com este seria o
sacrifício. Foram longos e infinitos os olhares ali para começarem o sorteio,
certos de que aquilo era mesmo o melhor a se fazer. Jéssica se candidatou a
segurar os gravetos, ninguém falou nada.
Ela
colocou todos os palitos na mão, envolvendo o risco que diferenciava o graveto
dos outros quatro. Cada movimento ali parecia uma semana, e todos estavam
nervosos. Ela começou a caminhar lentamente em direção a todos meio hesitante,
ele olhou para o céu como fazendo uma prece e em seguida olhou para Miguel, e
ele relembrou o que ela havia dito há algum tempo atrás, assim que ficaram
presos. Ela tropeçou e derrubou os gravetos, começou a recolhê-los, e Miguel
teve a sensação de que ela usou isso pra ver qual era o marcado, mas não
conseguiu achar forças nem coragem pra questionar aquilo, enfim calou sua
mente.
Cada
qual tirou seu graveto, ninguém quis olhar logo o que era, todos esperaram e
por fim se entreolharam, e com o pesar no coração foram abrindo as mãos e
verificando seu graveto, ao ver que não era o escolhido encaminhava calmamente
o olhar para o companheiro do lado, e assim, não tardou para que todos os olhos
se voltassem para uma única pessoa.
O
vento pareceu soprar mais forte ali dentro, Miguel começou a tremer
descontroladamente, o suor espirrava dos seus poros como erupções, sua boca
tremia e ele começou a perder a noção de tudo ao seu redor. Ele soltou o
graveto ao chão, tentou dar alguns passos, mas estava paralisado, ele achou que
morreria ali, naquele instante, mas do fundo da sua alma surgiu uma força que
veio aos poucos rasgando e passando por cada musculo do seu corpo, aos poucos
ele foi tomando força e aquela sensação veio subindo pela garganta, quando
chegou às suas cordas vocais explodiu de uma só vez:
-
Não! Não! Não! Vocês não podem fazer isso, não!
O
Silêncio havia sido rompido e todos continuaram quietos.
-
Pelo amor de Deus, eu me ofereço, matem a mim, deixem ela, por favor!
Todos
se olhavam, ninguém se ousava a dizer nada. Jéssica colocou o graveto marcado
no chão e foi até Miguel calmamente. Ele chorava compulsivamente e ela teve que
levantar seu rosto para fitar seus olhos:
-
Está tudo bem.
A
voz dela penetrou no seu corpo lhe anestesiando da dor que sentia, ele soluçava
e gaguejava as palavras mal ditas:
-Você
não precisa... Eu faço, por favor.
Ela
sorriu carinhosamente, ajeitou o cabelo todo bagunçado e o abraçou, ele
retribuiu e ela disse num tom suave e calmo:
-
No dia que eu jurei te amar, e que seria pra sempre eu lhe dei meu coração, e
hoje eu vou lhe oferece-lo novamente, pra você poder viver, eu fui escolhida
justamente, e não quero que você fique chateado, a minha hora chegou e eu quero
ser a pessoa que vai te tirar daqui, você já fez muito por mim, é a minha
vez...
Miguel
ouvia as palavras frustrado, sem saber oque dizer, como agir, estava
completamente paralisado e ficava repetindo a todo o tempo o quanto a amava.
Eles se beijaram e ela levantou, no exato momento Catarine desmaiou, seu estado
era pior que dos outros, ela estava muito mais desidratada, e todos correram para
socorrê-la. Miguel aproveitou a cena para gritar:
-
Pronto, vamos matá-la, ela já deve estar morta mesmo, ela vai ser escolhida por
ter sido a mais fraca!
Ninguém
estava ouvindo, todos estavam ajudando a amiga, e ele se sentiu mal quando
conseguiu processar suas próprias palavras. Jéssica voltou até ele segurou seu
corpo e lhe disse:
-
Aceite Miguel, é o destino, seus amigos precisam de você, não me decepcione.
Você me fez a garota mais feliz desse mundo, continue sendo quem você é para
seus amigos, eles merecem o seu amor. – Ela olhou pra baixo um instante e
diminuiu o tom de voz – Sabe, naquele dia em que nos conhecemos eu já sabia,
jamais encontraria alguém como você, e tinha certeza que morreria pra te fazer
feliz, muito obrigado por tudo, eu te espero feliz nessa vida lá de cima. Eu te
amo Miguel Montoya!
A
última gota escorreu do corpo dele e assim ela pode se deitar no chão da
caverna. Ela entregou uma pedra grande nas mãos de Fabrício e pediu que ele
fizesse. Com muito pesar no coração ele ergueu a pedra, viu pela ultima vez o
rosto calmo e sorridente da amiga, e ali não havia mais cinco pessoas.
***
Miguel
foi até o corpo estirado no chão, segurou sua mão e chorou no peito de Jéssica.
Todos viam horrorizados a cena, e se afastaram dali, ajudando Catarine que
voltava a acordar em um estado extremamente preocupante. Eles sabiam quem
precisavam comer, mas ninguém ali sabia se conseguiriam. Fabricio indicou a
Miguel que ele deveria ser o primeiro.
Depois
de um tempo ele olhou para a namorada morta e tentou apagar por cinco minutos a
realidade pra poder proceder com o que ela tanto lhe pediu pra fazer. Na sua
cabeça a ideia de que ela propositalmente se escolhera para morrer martelava
seus pensamentos, mas agora era tarde, e ele sabia, e tentava desviar aquilo
tudo.
Por
fim, enxugou as lágrimas, fechou os olhos da garota e cobriu o seu rosto com
uma das mochilas. Ele precisava se alimentar dela, todos precisavam, e ele
precisava iniciar o ritual, se não todos morreriam, e morte dela seria em vão,
ele não podia decepcioná-la. Ele olhou para todo o corpo da namorada e se
instalou próximo as suas pernas, ele começou a acariciar as coxas da menina e
olhar fixamente para elas. Na sua cabeça ele tentava materializar outra coisa
‘carne!’ mas a tentativa não era muito eficiente. Ele aproximou a boca da perna
branca e lisa da garota e pode sentir a sua loção hidratante que há muito já
havia perdido o cheiro, ele deu um beijo nas coxas dela e quase se excitou.
Abriu a boca e mordeu como um animal selvagem a perna. O carne entrou na sua
boca e o sangue tingiu seus dentes, instantaneamente seu cérebro bloqueou as
informações e ele achou gostoso aquilo, seu corpo podia sentir cada proteína
armazenada naquela carne, naquele sangue. Então ele deu outra mordida, e sua
fome pareceu diminuir. Justamente no momento em que um helicóptero apareceu no
buraco do alto da caverna, eles estavam salvos...
***
A
mensagem de Jéssica tinha chegado à sua casa e sua mãe colocou toda a polícia
atrás dos garotos. Depois de alguns dias encontram o rastro do Jipe na pequena
estrada que levava até a caverna. Eles os tiraram de lá e os encaminharam
imediatamente ao hospital. Catarine havia perdido muito água, e não aguentou
até chegar ao hospital. A mãe de Jéssica entrou em pânico ao saber da filha
morta, e culpou Miguel pela sua morte. Ele por sua vez ficou quiete como se no
fundo sentisse que ela realmente tivesse razão. Depois daquilo anos se passaram
até o trauma ser ao menos parcialmente superado, até os dias de hoje Miguel
tinha pesadelos com isso, e sempre era um indicador de que algo ruim estava pra
acontecer. Os três garotos que saíram daquela caverna naquele dia nunca mais
conversaram entre si, o grupo havia acabado.
***