terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Segredos de Liquidificador




- Ligue o rádio - disse ela - Ligue bem alto para que eu possa gritar o que estou sentindo.

- O rádio está quebrado - disse ele - Liguei no 220V, mas era 110V.

- Você não está entendendo!? - gritou ela - Eu preciso gritar tudo que tem aqui dentro, mas moramos nessa kit net tão pequena que se eu fizer isso, todos vão saber.

- E qual o problema das pessoas saberem de seus sentimentos? Às vezes nossos mais profundos segredos são partilhados pelas pessoas à nossa volta, e ficamos sofrendo à toa tentando escondê-los - estranhou ele, ainda não entendendo o que ela queria dizer.

- Pare de enrolação e ligue qualquer coisa aí que faça barulho - disse ela com cara de raiva, franzindo o lábio como só ela fazia quando estava impaciente.

Ele deu um sorriso de canto de boca.

- Você é maluca - disse ele - Não há nada aqui que faça barulho, nada que possa mexer com nossa rotina e com nossos corações. Tudo está no seu lugar.

Ela desesperou-se. 

Ligou o microondas, mas o "vruuuuuum" não era alto o bastante para que ela enchesse os pulmões e gritasse, sem que ninguém pudesse ouví-la. 

Ligou a TV no volume mais alto, mas ainda assim estava baixo demais.

O que ela tinha a dizer era especial demais, precisava de algo que fizesse um barulhão, assim poderia gritar sem que ninguém pudesse ouvir.

Gritar para ninguém ouvir. Fazemos isso com mais frequência do que deveríamos.

Ela desligou a TV, aquela receita de bolo de cenoura da Ana Maria Braga estava dando fome.

Tentou ligar o rádio de novo.

Ligou o secador de cabelos (daqueles com nano íons de prata - ou sei lá o quê que eles inventaram um nome para vender mais).

Ligou o chuveiro, porém ele não fez barulho nos decibéis que ela desejava (além disso, acabou molhando a roupa com a explosão de água).

Ele riu vendo seu desespero. O que teria ela para dizer - gritar - sem que ninguém ouvisse?

Ele aproximou-se do liquidificador e ligou-o. Ela abriu um sorriso de orelha a orelha, chegou perto dele e tascou-lhe um beijo na boca. E não era beijinho, era beijão. De língua mesmo, pode acreditar. Demoraram-se, mas quando finalmente acabaram ela gritou.

Gritou sei lá o quê, pois o liquidificador era alto demais e ele não pôde ouvir. Ela tentou gritar de novo, mas ele não conseguia entender. Na terceira tentativa, ele desligou o liquidificador, mas ela não percebeu.

Encheu os pulmões e gritou o mais alto que pôde, em alto e bom som:

- EU TE AMO!!!!!!!!!!!!

Ela ficou vermelha e ele mais vermelho ainda. De todas as kitnets ao redor as pessoas gritaram e bateram palmas. O som voou pelos ares e atingiu os prédios vizinhos, alavancando uma enxurrada de palmas e gritos de todo o bairro.

Ela ficou vermelha de raiva, e ele de felicidade.

Ela ia gritar de novo (desse vez para xingá-lo), porém ele chegou perto, agarrou-lhe os cabelos ruivos e deu-lhe um beijo na boca, ainda mais quente que o primeiro.

- EU TE AMO TAMBÉM!!!!!!!! - gritou ele, ainda mais alto.

As palmas voltaram e o bairro inteiro aplaudiu. Ela sorriu lindamente e disse:

- É, você tem razão, o amor não deve mesmo ser escondido debaixo de um turbilhão.




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