domingo, 27 de outubro de 2013

O Assassino do Apocalipse.

Por Kauê de Paula



O sino badalou uma única vez, e as viaturas se aglomeravam ao redor da igreja de arquitetura medieval. Era a badalada das três da madrugada, quando o sino despencou dos dezoito metros de altura devido ao fogo que tomava conta dos adornos religiosos naquele pacato bairro afastado do centro da cidade. Os bombeiros tentavam conter o fogo, mas a chama bufava e gritava ganhando mais vida conforme o vento a alimentava com rajadas constantes de oxigênio. A cruz de dois metros de altura se encurvou e invertida ficou pendurada a alguns centímetros de tocar o chão. Esse era o cenário exterior, particularmente até belo se comparado ao homicídio que há pouco havia acontecido.

O corpo de uma jovem garota jazia sem vida em cima de um altar no centro da igreja, alguns focos de fogo ainda ardiam por perto e corpo parcialmente queimado revelava fortes sinais de tortura. Velas e artefatos religiosos cercavam o altar como uma espécie de ritual, dentro de um cálice havia o sangue da virgem sacrificada, um policial passou mal e teve de ser retirado dali ao mesmo tempo em que vomitava na cena do crime.

-É ele de novo, sem dúvidas. – dizia uma voz feminina em meio a todos ali.

-Espero que esse cretino seja pego logo capitã – dizia o Sargento Lopes.

O assassino do apocalipse, como havia sido batizado pelo departamento, estava atacando há cerca de seis meses, onde já havia feito sete vítimas incluindo a virgem incinerada na igreja. A capitã Malagutti era a chefe do departamento de policia da cidade e junto ao Sargento Lopes estavam à frente no caso desde o seu início. O caso já era de conhecimento público devido ao forte teor teatral ao qual o assassino deixava suas vítimas, e extremamente meticuloso fazia com que a polícia enfrentasse sérias dificuldades de encontra-lo.

-Já são sete, Lopes, o que vamos fazer? A mídia quer meu pescoço, as pessoas na rua estão com medo! – Dizia a Capitã.

-Calma Deb! – Dizia o Sargento tentando acalmar a chefe e amiga de muitos anos – A gente vai achar esse bastardo, ninguém faz toda essa bagunça e deixa a polícia sem pistas, nos estamos próximos de fechar esse.

E Débora Malagutti olhava friamente pela janela, com sua farda policial e seu rosto duro e emblemático, aonde apenas um amigo como Lopes poderia enxergar o real desespero que se encontrava sua chefe.

Oito suspeitos haviam sido listados das últimas investigações, todos com fortes traços religiosos e algum tipo de distúrbio psicológico. O detetive Carlos estava encarregado de interrogar os suspeitos, e após horas de conversa fiada trazia as mesmas más noticias. Nenhuma pista, nadinha. Eram todos possíveis assassinos em potencial, e Carlos que era um jovem cristão convicto sentia na pele a energia que aquele caso trazia pro seu estado de espírito.

Carlos havia ficado desconfiado de um dos suspeitos em específico, era um tal de Dênis Batista, sujeito estranho, com a bíblia debaixo do braço, papel de boa pessoa, pronuncia impecável, fiel convicto e estudado em ciências gerais, abre aspas para ciência forense. Mas nada incriminava o sujeito, tinha até algumas provas de que estava em outro lugar no momento de alguns crimes, impossível prosseguirem sem maiores fatores.

O telefone tocou, e uma denuncia anônima dizia haver um corpo em praça pública aquela tarde. Todos saíram em disparada até o local, onde um rapaz moreno estava pregado pelas mãos e os pés em um banco de madeira no meio da praça. Carlos olhava ao entorno e via as crianças pedalando e os casais andando e se perguntava como ninguém percebia um estranho com um corpo aparecer por ali.

O homem em posição de cruz estava esfaqueado em diferentes ângulos e desenhos tomavam forma em meio ao sangue que ainda quente começava a coagular sobre o corpo da vítima. Uma página da bíblia estava presente na obra do assassino e junto a ela uma mensagem direta e pessoal.

“Dei-te as chances necessárias Capitã, agora é a sua vez...”.

O semblante duro de Deb era mera fachada, o medo tomou conta dela e aquela noite ela não pode dormir. Seus detetives fizeram pouco progresso com aquela cena de hoje à tarde e ela sabia que agora estava na reta do homem a qual estava caçando.

-Sargento Lopes! Temos algumas informações novas! – Dizia Carlos ao receber o relatório do laboratório. Era possível verificar que os pregos utilizados estavam perfeitamente limpos e sem digitais, foram encontrados traços de substâncias usadas pelo próprio departamento de investigação forense.

-Ou seja, estamos lindando com algum perito, ou...

-Um dos nossos, Sargento! – Completou Carlos.

-Faça um relatório Carlos, e só entre nós dois uma lista de todas as possíveis ligações do pessoal do departamento com os assassinatos.

-Mas Sargento, você quer espionar nosso próprio pessoal?

-O que for preciso detetive, esse caso está fora de controle, faça isso.

As notícias traziam alguma esperança aos ouvidos da Capitã, e naquele dia ela sentava-se em uma mesa de restaurante no centro da cidade, onde o seu amigo Sargento Lopes lhe passava o relatório de progresso e jantavam como velhos amigos. Naquele dia, depois do jantar, o Sargento levou sua amiga para casa, para a sua casa, e lá eles puderam terminar o relatório de progresso que o vinho insistia em martelar na cabeça de ambos. A noite foi calorosa:

-Ele não vai chegar até você meu amor, eu não permitira – Dizia Lopes.

No dia seguinte todos no departamento aos seus afazeres e a Capitã e o Sargento como belos profissionais escondiam seu pequeno segredo. Enquanto isso Carlos batia em algumas teclas repetidas e depois de algumas análises encontrou uma digital na página da bíblia deixada na última cena do crime. O único problema era que a digital estava muito bem evidente o que era de estrema suspeita dada a perspicácia do assassino, mesmo assim foi analisada e batia com um dos suspeitos, o Sr. Batista.

Todas as viaturas foram mobilizadas à residência de Denis, e lá ele estava em uma espécie de ritual religioso, foi interrompido e algemado. Sem resistência foi levado ao departamento onde pela quinta vez estava sendo interrogado.

-Sim, eu estava na Igreja nesse horário – dizia Batista

E uma câmera de vigilância de um estabelecimento flagrava seu carro chegando à Igreja naquele horário, ele não estava mentindo, mas algo estava errado. Do lado de fora o Sargento mordia a manga da camisa social e Carlos aflito dizia:

-Não o temos como assassino, apesar de não sabermos se era ele no carro e não termos nenhuma testemunha ocular. Precisamos de mais, peça a Capitã um mandato para investigarmos a casa dele.

O Sargento assentiu com a cabeça e se dirigiu até o gabinete de Deb, ela não estava lá. Em cima da mesa uma cruz e um envelope com borrões vermelhos.

-Droga, droga, DROGA! – o Sargento saiu gritando com o envelope ensanguentado nas mãos – Foi uma armadilha! A capitã foi sequestrada enquanto íamos atrás do suspeito, todos pra rua, agora!

Carlos olhava pro Sargento que estava apavorado e apesar da situação sentia que ele estava comovido demais com o sequestro. Carlos sem pressa liberou o Sr. Batista e em seguida se juntou a equipe de busca.

Em uma sala escura Malagutti só ouvia a sua própria respiração, deveria estar há horas ali, se lembrava de uma forte pancada na cabeça enquanto se dirigia ao seu carro no estacionamento do departamento. Ela gritava:

-Quem está ai?

-Socorro!

-Alguém me ajude!

O som ecoava pelas paredes e um som distante entrava pela fresta de luz que parecia ser uma porta. Alguém estava ali com ela, e frequentemente passeava pelos arredores deslizando objetos frios pelo seu corpo e derrubando líquidos estranhos na sua cabeça. O assassino deslizava maciamente uma lamina pelo corpo da capitã, e ela podia sentir o sangue tomando conta da sua pele em vários pontos, ele pôs uma venda e mordaça nela e só depois de dois dias inteiros proferiu as primeiras palavras:

-Foram muitas brechas capitã, seu pessoal está lento. – E a voz vinha em um tom perceptivelmente forjado e abafado por algum objeto.

-Eu andei pensando... Não quero que isso acabe aqui, vou te dar mais uma única chance o que acha? – E a capitã balbuciava sons pela mordaça na sua boca.

-Foi o que eu imaginei... Eu vou te soltar, e você terá uma semana, sugiro que você aja com cautela e sabedoria... – alguns minutos seguiram em silêncio, o assassino pegou alguma coisa com as mãos e se aproximou de novo da Capitã.

- Já diria a bíblia Capitã, ‘’quem semeia a injustiça sempre colherá a desgraça’’, será que você é capaz de fazer justiça? – E então outra forte pancada na cabeça e apagou.

Acordou horas depois no hospital, havia sido encontrada em uma esquina qualquer, agora podia ver seu corpo e os vários cortes que havia nele. Sentiu vontade de chorar, mas a sua vida só estava ali por um único desafio, e ela iria desvendá-lo. Em menos de 24 horas teve alta, os cortes não eram graves apesar de muitos. O Sargento Lopes abraçou a Capitã ainda na ala médica e duas lágrimas rolaram pelo seu rosto:

-Foi culpa minha, eu descuidei, eu te prometi, meu Deus, me desculpa...

-Calma, Sargento, não tinha como você adivinhar, não é hora para desculpas e arrependimentos, vamos prender esse cretino.

No Departamento a capitã puxou Lopes para seu gabinete e no sigilo contou todos os detalhes do sequestro.

-Eu sinto Lopes, eu posso sentir que era alguém daqui, ele era extremamente cauteloso em não deixar a sua voz verdadeira aparecer.

-Mas isso pode ser uma cautela geral Capitã.

-Eu sei, mas eu sentia que ele não queria que eu ouvisse a voz dele como se eu já a conhecesse. Precisamos investigar nosso pessoal, é um pressentimento, o que acha?

-Eu já fiz isso Capitã, Carlos está em sigilo juntando informação do pessoal.

-E o que temos até agora?

-Não sei, ainda não o vi, vou verificar e te informo.

O Sargento trombou Carlos e descobriu que sua investigação não levava a lugar nenhum, ninguém ali de dentro se encaixava dentro do quadro de assassinatos dos últimos meses, era um beco sem saída.

Mais tarde naquele mesmo dia Carlos foi visitar o Sr. Batista, algo dizia que aquele homem ainda tinha algo a esconder. O homem sempre bem humorado convidou o detetive a entrar, e com a mão sempre próxima a pistola na cintura Carlos foi entrando e analisando cada canto da casa. Ele sabia que a conversa ali não levaria a nada, Batista era um homem de bom diálogo, e depois de correr bem os olhos por tudo não achou nada que fosse suspeita dada a casa de um homem extremamente religioso.

-Acho que é só Sr. Batista, me daria um copo d’água?

-Claro meu jovem, já volto.

E enquanto o homem adentrava na cozinha o detetive bisbilhotou as anotações sobre a mesa e os livros na prateleira, nada despertava suspeitas, até que então ele olhou no lixo do escritório e achou a bíblia que o Sr. Batista vivia carregando consigo. Suspeitou e a pegou, e encontrou uma página faltando em Apocalipse, à justa página da cena do crime. Era uma informação importantíssima, mas não conclusiva, guardou a bíblia sem que o homem percebesse e foi embora sem dizer nada.

Chegando ao departamento pode concluir que a página realmente pertencia à bíblia do Sr. Batista. “Bingo” pensou sozinho. Não avisou ninguém, foi fazer a apreensão sozinho, queria todo o mérito, há tempos almejava por uma promoção no departamento.

A Capitã estava nervosa aquela tarde:

-Não é possível Sargento, como nenhum deles é suspeito?

-Nada Deb, todos limpos, Eu verifiquei todos os registros do Carlos.

-E quanto ao Carlos?

-Como assim? 

-Quem o investigou, eu digo.

-Ninguém, ele é de extrema confiança, eu achei que...

-Ora Sargento, ninguém aqui está em confiança nessa situação. Até você pode ser considerado suspeito.

-Você não está exagerando Deb? Carlos é um dos nossos melhores detetives, está quase sendo promovido.

-Por isso mesmo, um dos melhores faz o papel perfeito de assassino meticuloso. E outra. Carlos não é o tal religioso do Departamento? Cheio de devoções e orações diárias?

O Sargento se pegou pensativo por um instante.

-Você tem razão!

-Então eu mesmo vou investigar, faça-me o favor e mantenha-o aqui no departamento.

-Sim Senhora – disse o Sargento, sem saber que Carlos já não estava mais ali.

A Capitã fez uma longa pesquisa e baixa de dados e em uma fixa anexada ao perfil do detetive, e encontrou um quadro clínico que indicava que Carlos sofria de uma disfunção psíquica aos doze anos de idade, mas que havia dado como curada depois de alguns anos de tratamento. Mas foi o suficiente. Ela se levantou e foi até a sala de Carlos, ele não estava. Então foi até a sala do Sargento, e ele também não estava lá.

Os rádios e telefones não respondiam, e quando a preocupação começou a aumentar a Capitã colocou patrulhas na rua. E segundos antes de emitir uma ordem de busca seu celular tocou.

-Deb!? É Lopes falando. Venha até a igreja do centro, rápido!

As patrulhas chegaram em poucos minutos, e na escadaria da igreja havia um homem esquartejado em seis partes. A cena era bizarra, e o sangue descia a escadaria como uma fonte que já seca emitia um cheiro forte de ferro no ar, que embriagava a sanidade de qualquer um ali presente.

-Carlos não está aqui! – Dizia a Capitã

-Eu não consigo localizá-lo o dia todo – Sugeriu o Sargento.

Um policial se aproximou dos dois e os deslocou a uma viatura, onde um vídeo mostrava o carro de Carlos chegando há horas atrás na casa do Sr. Batista.

-Esse carro é de Carlos – dizia a Capitã

-E essa casa é do Batista – dizia o Sargento

-Um dos suspeitos! – exclamou a Capitã

-Que agora está ali na escadaria esquartejado – disse o policial em tom informativo.

Os dois se entreolharam e a Capitã emitiu o mandado de captura ao detetive. O que parecia ser uma longa jornada pela frente se acabou em dois minutos depois quando uma viatura informou que Carlos estava na casa de Batista.

Entrando pela porta Carlos já estava algemado, suas roupas estavam ensanguentadas, e uma faca jazia ao chão. Os policias afirmaram que ele estava de pé, estático com a faca em mãos quando chegaram. O sangue deu positivo quanto ao do Sr. Batista, e Carlos permaneceu quieto, imóvel e completamente ausente da situação.

Em direção à cadeia o detetive balbuciava hinos religiosos e se auto aplicava orações de perdão. A capitã e o Sargento iam calados. Carlos não negou a culpa, nem confessou nada, se recusou a falar diante de qualquer um. Em estado de choque ele se fazia passar por um lunático.

A noite caiu e na casa de Deb, o Sargento tirava a camiseta ao se deitar na cama com a Capitã.

-Jamais desconfiaria de Carlos – disse Lopes.

-Pois bem Sargento, eu ainda estou pasma, há algo nessa história que não bate.

-Como o que, por exemplo? Ele possui o perfil que procurávamos você mesmo viu, o cara estava fora da realidade, nesses surtos psicóticos ele deve ter assassinado todas aquelas pessoas.

-Talvez tenha razão Sargento, mas o olhar dele era de medo, você sabe como esses religiosos encaram o mundo, são capazes de tudo pelos dogmas que acreditam, e se o assassino o usou?

-“São capazes de tudo” você mesmo definiu a culpa dele agora. Eu acredito que as provas não mentem, e elas são muitas!

-Não mentem mesmo, você tem razão, talvez seja só a loucura dessa história toda e de ter que imaginar um colega de trabalho se tornando um dos maiores assassinos que o meu departamento já viu.

-Eu sei qual é a sensação, todos estão pasmos, mas você fez a coisa certa.

Lopes beijou os pés da Capitã e foi subindo lentamente pelo seu corpo até ficar em cima do corpo da mulher, beijou seu pescoço e ela disse:

-Vamos aproveitar a noite então, Já que a justiça foi feita!

“Pode apostar” disse Lopes mordiscando a orelha da Capitã e suavemente segurando suas mãos cochichou nos seus ouvidos:

-Ele teve o que merecia Deb, por que “quem semeia a injustiça sempre colherá a desgraça.”.
            

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