Por alguma brecha escondida uma leve brisa fria
entrava e atravessava a sala de estar, dançando por entre os meus pés.
Desistindo de achar a origem do frio me rendi e coloquei um par de meias brancas
nos pés, voltei à sala e liguei a TV. Fiquei ali encarando a imagem em seus
milhares de pixels e mudando de canal em piloto automático. As informações
passavam de um ouvido para o outro sem serem registradas, eu então me servi
mais uma dose de uísque e parei pra ouvir a chuva que começava a sambar no meu
telhado, criando uma harmonia única, que eu não poderia deixar de escutar.
Os relâmpagos
e trovões juntamente com a minha casa escura criava um clima sombrio à madrugada,
e eu me olhava pelo reflexo da janela e só via os restos de escolhas mal feitas
ao longo de todo o caminho que me levara até ali, o tempo passou, e eu não era
nada, simplesmente nada, a vergonha era estar vivo ocupando aquela poltrona. Um
relâmpago estourou há metros dali e me tirou do transe, de imediato o telefone
tocou.
-Preciso
da sua ajuda aqui...
Era
previsível a ligação. Syd era a única pessoa que sabia da minha existência, era
o tipo de cara que você não gostaria de se envolver, mas por algum motivo eu
partilhava uma admiração por ele, talvez por as vezes sonhar em algum dia ser
como ele, determinado, engajado nas suas ações, mas talvez só por isso.
Eu
entrei em sua casa e lá estava ele com as mãos cobertas por sangue, sentado na
mesa da cozinha com as mãos sobre o rosto, uma faca jazia na pia pingando e o
chão sujo reluzia todo aquele universo avermelhado. Ele então olhou nos meus
olhos sem qualquer sentimento de culpa, frio, e calmo:
-Eu
o matei!
Aquela
noite eu sai com um cadáver no meu porta-malas, embrulhado, sem nem saber quem
era. Quem ajudaria um cara como Syd? Talvez você não entenda, mas ele era uma
inspiração. Eu me comprometi naquilo por que a emoção me movia, além do mais a
programação esperada para aquela noite era a mesma dos últimos 30 anos.
Syd
era esperto, manipulativo, tinha negócios por toda a cidade e era conhecido por
meia dúzia de redes de interesses diversificadas. O homem era um gênio, maligno
talvez, mas um gênio, que se tornou meu amigo por um único motivo, eu era a
única pessoa nesse mundo que não tinha o que oferecer e talvez por isso ele
tenha me adotado como seu amigo.
***
***
Meu
trabalho era automático e monótono como sempre, sai daquele escritório direto
para outro. O Dr. Gilmour não me atenderia hoje, seu escritório estava fechado,
e eu ficaria sem minha consulta psiquiátrica da semana. Era até um alivio, eu
detestava as sessões, elas só me mostravam como eu era uma vergonha para o
mundo, eu tinha vontade de mandar o Dr. para o inferno com suas teorias de como
eu deveria me comportar, mas sempre quieto eu engolia tudo, e sem me desesperar
voltei para casa mais cedo.
Liguei
a TV de plano de fundo enquanto esquentava um resto de comida velho que estava
no fundo da geladeira, tomei um banho demorado e desci as escadas para pegar
uma cerveja. A campainha tocou seguida de batidas na porta, era tarde da noite,
mas eu abri a porta sem se preocupar, e sem grandes novidades era Syd, que foi
logo entrando e se sentando ao sofá enquanto eu fechava a porta.
-Estão
atrás de mim!
Ele
dizia que a polícia estava desconfiada, e quem diria, o poderoso Syd com medo.
Pediu pra passar uns dias ali e eu concebi sem grandes problemas, servi uma
taça de vinho e uns cigarros e partilhamos a transmissão escrota na tela da TV.
Acordei
no meio da noite e desci para buscar um copo d’água e quase me assusto com
aquele homem deitado no sofá, quase esqueci, mas recordei e pude analisar o
sono de Syd. Parecia transmitir a sua presença até com os olhos fechados, era
um grande caráter, e eu o invejava e admirava, mas apesar disso meu interesse
em sua vida era pequeno, e quem sabe quantas vezes ele já devia ter fugido da
polícia.
***
***
Algumas
pessoas cochichavam nas outras mesas olhando para mim, eu me perguntei se teria
ido trabalhar sem as calças naquele dia, mas estava tudo no seu devido lugar,
inclusive a minha cara de insônia misturada com drogas de costume. Uma
movimentação se fez próximo da mesa e quando levantei os olhos novos rostos ali
me encaravam.
-Boa
tarde, eu sou o Tenente Waters, gostaria que o Sr. Nos acompanhasse até o Dep. De
polícia para conversarmos a respeito de um possível homicídio.
E o
meu ‘ok’ soou tranquilo sem pensar nas grandes consequências daquilo, Syd
estava sumido da cidade por semanas e eu estava ali, preso em uma salinha
pequena com uma mesa e cadeira, uma luz forte acima da minha cabeça enquanto o
Tenente balbuciava perguntas que eu não conseguia assimilar.
-Então
você pode me dizer onde estava nessa noite?
E
minhas respostas eram curtas e simples, ‘sim’, ‘em casa’, ‘não’, ‘não sei’. Um
dos caras ali disse algo em particular ao tenente e ele mudou o tom de voz ao
olhar nos meus olhos.
-Então
o sangue no seu carro, a pá, e o corpo enterrado não lhe dizem nada?
Subitamente
eu senti que estava sendo culpado pelo crime e comecei a gaguejar, olhei para o
pequeno relógio na parede e as horas se arrastavam. Devo ter perdido 10 anos naquela
sala, até a hora que confessei ter enterrado os corpos para Syd, que era o real
assassino.
O
tenente suspirou e aquilo continuou por horas intermináveis, e eu ali buscando
na memória como poderia provar a culpa de Syd, ou ajudá-los a encontra-lo,
mesmo sendo meu amigo eu tinha que confessar, era um covarde e não podia
aceitar a sentença de morte no lugar dele, mesmo querendo morrer por todas as
manhãs, eram crimes que não cabiam na ficha policial.
Fiquei
lembrando dos dias em que Syd construía seu império da morte usando sua lábia e
dos seus dias debaixo do meu teto, e fui ligando as coisas, tornando o homem
cada vez mais genial, sabendo que talvez eu estivesse cumprindo meu propósito de
morrer ali no lugar dele, além do mais o meu propósito nunca havia sido
revelado, era um mistério aquela amizade. Abaixei a cabeça sem reação e de
repente me veio a resposta.
-Sr.
Tenente, já sei onde ele está, as coisas dele continuam em casa, ele está lá,
na minha casa...
Fui
interrompido com fúria.
-Escute
aqui, chega de brincadeiras, você não vai escapar dessa, ao menos confesse os
seus crimes, nada vai pagar sua vida de pecados, um homem está morto, e a
família do Dr. Gilmour jamais irá perdoá-lo.
Eu
arregalei os olhos, então Syd matara meu psicólogo, mas por quê? Talvez um
favor para mim, não fazia sentido, eu não entendia, fiquei de certa forma
aliviado por não ter que ouvir mais a voz do Dr., mas que pensamento cruel da
minha parte, respirei por um instante lembrando de ter enterrado o corpo do Dr. e
então falei.
-Eu
não sabia de quem se tratava, eu sinto muito.
O
outro rapaz disse algo sobre alucinações no ouvido do tenente e ele deu um
último olhar para mim.
-Bom,
pegue essa pausa para pensar melhor no que você fez, por que você jamais ira
sair daqui Sr. Syd. – E saiu da sala me deixando sozinho com os meus
pensamentos.
Syd
estava ali? Eu levantei confuso e então pude ver no vidro da pequena sala, Syd
estava realmente ali, escondido no reflexo do vidro embaçado, tudo me pareceu
esclarecido então. Eu não era um covarde afinal, um imenso sorriso se abriu no meu rosto. Está contente Dr. ? Estou curado!
E
pude ouvir a chuva caindo lá fora, os relâmpagos eram fortes e um arco íris embrulhava
o céu enquanto a escuridão vinha se aproximando, e aquela harmonia singular marcava
a minha passagem de ida para um mundo onde eu poderia de fato aproveitar o
tempo perdido e repensar na pessoa que eu gostaria de ter sido.
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